Não me lembro da última vez que saí à rua sem medo. Os meus produtos de maquilhagem estão intactos há mais de duas semanas e a máquina da roupa trabalha sempre no mesmo programa: o que lava pijamas, toalhas e lençóis na perfeição.
O meu carro tá ali do outro lado da rua e já ganhou pó. Acho que nem vai pegar à primeira quando lá for. Não destranco a porta de casa há uns dias e ia jurar que tinha mais pacotes de bolachas de chocolate na despensa do que aqueles que consigo ver daqui.
Fecho os olhos e sinto o cheiro da fruta fresca acabada de vir da praça. De repente sinto que tenho sete anos e a minha mãe acabou de chegar das compras. É verão e estou a comer damascos sem os lavar. De repente acordo e acho que estou a dar em louca. Óbvio que não posso fazer isso agora. Lavar as mãos? Tem de ser enquanto canto duas vezes os parabéns.
Apetece-me ir jantar com os meus amigos e gastar mais do que o que devia. Quero acabar com o vinho todo que há na prateleira e chamar um Uber para ir até casa umas horas depois. Antes, ainda tenho de ir beber mais uns copos.
Quero acordar totalmente ressacada e ir ver o Panda com a minha filha para a sala. Depois, às 10 da manhã, ela vai pedir-me para ir brincar para a rua. Vamos acabar a correr no parque e caímos as duas no chão. Fartamo-nos de rir às gargalhadas.
Nenhum desses cenários foi possível nas últimas semanas, muito menos acontecerão nas próximas. Apetece-me chorar e abraçar os meus pais. Mas páro uns segundos para olhar à minha volta e, fogo, para não dizer outra coisa, estou em segurança.
Estou em segurança e sou uma privilegiada por isso. Aqui, a heroína não sou eu. Não és tu que estás em casa rodeado de bolachas de chocolate com os pés em cima de um banco e a ver séries da Netflix sem parar. E ainda te dás ao luxo de ter quem te leve a comida a casa.
Os heróis são os profissionais de saúde que saem de casa sem saberem as horas a que vão voltar a tocar à campainha. Que podem ficar infetados com a Covid-19 a qualquer momento e, a confirmar-se, não vão ver mais a família nos tempos seguintes.
Os heróis são aqueles que não pensam duas vezes antes de darem a mão a alguém que está com 40 graus de febre ou falta de ar, mesmo sabendo que os próximos, muito provavelmente, serão eles.
Os heróis são os que vão para a guerra sem espada porque não há tempo a perder, que deixam o almoço ou jantar para depois, que arriscam a vida por outras vidas. Sem pestanejar. Sem merdas.
São os que não podem ficar em casa, porque a casa deles agora são os hospitais, os centros de saúde, os lares. Os heróis são os que estão a lutar nessas casas para que, se tudo correr bem, daqui a uns meses todos podermos sair das nossas.