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Opinião: O Viso tem Estilo

Leia a crónica exclusiva do escritor setubalense Alex Couto, pós-graduado em Artes da Escrita.
O Bairro do Viso.

Sorte a minha. Quis o destino que o sítio onde crescesse tivesse raízes culturais que corriam fundas. A cultura piscatória trazia marcas estéticas notáveis. Os trabalhadores fabris tinham a sua própria imagem, alternativa à dos pescadores. Um menino como eu percebia desde cedo que as marcas estéticas do mundo podiam começar no meu bairro, que certas atitudes e formas de estar se embrulhavam numa forma de vestir. 

Um bom exemplo disso era o look de pescador que proliferava na comunidade que se estendia do Bairro do Viso propriamente dito, até na descida à Palhavã e nos bairros circundantes a toda esta zona. Não era raro ver uma camisa aos quadrados sobre outra camisa aos quadrados, o que parece deveras Anna Wintour na subversão das proporções do padrão, mas era só uma consequência da necessidade de conforto num contexto de vento e frio. Os chapéus, mas também os gorros, e até aqueles com orelhas que ficaram na moda em meados da década de dez deste século. Vê-los de calças à peixe-peixe, autênticos anfíbios meio dentro de água, metade fora. Estas imagens dos pescadores são tão fortes que deixam marcas na estética de um local.

Com estes looks, vinha também uma atitude descontraída, confortável na certeza de que se fosse preciso impor o seu ponto de vista o conseguiam fazer através do discurso ou, na pior das hipótese, num combate. Ainda me lembro do pescador que passou por mim de bicicleta quando fumava na Doca dos Pescadores e, sem sequer olhar para mim, me sugeriu que fizesse uma gravata naquilo (o que não era um comentário ao meu vestir, mas à incompetência da beata). Lembro-me do pompom imóvel do seu gorro, que parecia imóvel no deslizar da bicicleta.

Para mim, aperceber-me da importância do contexto cultural para o desenvolvimento de nuances estéticas foi algo que já pressentia ser verdade de um ponto de vista meramente empírico, mas que mudou ao ler o título Status & Culture do W. David Marx. A tese deste livro é que por detrás de opções de estilo que parecem arbitrárias, existe na verdade uma profundidade cultural que por vezes nos pode passar ao lado. Ao olhar para o Bairro do Viso, onde não é preciso ser pescador para optar por uma camisa de flanela grossa (e idealmente aos quadrados) como peça de roupa quente, é claramente uma consequência da proximidade de um núcleo piscatório cujas decisões de estilo acabam por influenciar a comunidade à volta. Se calhar a minha paixão por workwear (roupa criada para facilitar trabalho manual) também vem dos fatos de macaco que os meus vizinhos usavam chegados dos seus turnos na Secil ou nas fábricas da zona da Mitrena.

Acho que nunca esqueço quando o vi, tinha uma alcunha referente à sua profissão no matadouro — mata-porcos, mata-vacas ou mata-bicho. Como os meus anos no Bairro do Viso me trouxeram amigos e conhecidos com cada uma destas alcunhas, fica difícil de me lembrar de qual era qual (no Viso, alcunhas eram também chamada de apelidos — como se uma alcunha se tornasse um nome formal). O Mata tinha uma camisa às riscas colocadas para dentro de uma calça bege com um cinto entrançado — perguntei-lhe qual era o estilo dele porque não percebia, de todo, e ele pagou-me uma Heineken no Café Panorâmico e explicou-me que as referências de vestir podiam chegar de diferentes coordenadas. Ele claramente preferia o património virado ao campo de Palmela do que a nossa griza da beira-mar.

Ainda hoje o meu estilo é marcado por alguns coordenados que gosto de considerar autênticos clássicos do Bairro do Viso. O meu favorito, uma variação da combinação que usávamos para sair à noite e ocultar a nossa proveniência de esquina, era aquele em que se conjugava uma camisola de malha com uma camisa branca cujas golas espreitassem por cima do tecido grosso. Quando faço versões desse outfit para contextos literários ou corporativos, lembro-me sempre de como a nossa entrada no Club do Rio ficava muito mais fácil quando tirávamos os nossos Nike Air Max e os substituíamos por uns clássicos sapatos da Bata (algo que agora só encontro na proximidade dos modelos Wallabees da marca Clark’s).

Ainda hoje dou por mim a considerar aquilo que em tempos considerei pobreza, viver numa zona onde os indicadores económicos descem com quase tanta força como o terreno sobe em direcção à Arrábida, foi na verdade um tesouro que me equipou com sensibilidade para território cultural e outros símbolos de status. O fio de ouro, o anel também chamado de cachucho e uma certa certeza de que estas peças podiam ser vendidas em caso de dificuldades tornou-me uma pessoa mais atenta à realidade do mundo à minha volta. E isso começou no Bairro do Viso e no estilo das suas ruas.

É claro que este património estético também só é tão apreciado por mim porque de certa forma a moda e o estilo pessoal eram elementos que marcaram a história da minha família. A minha avó Leontina fazia arranjos de costura e algumas invenções como modista numa década de cinquenta em que a limitações financeiras provocadas pela segunda guerra afetavam a quantidade de comida que era posta na mesa. Há também a história lendária na zona da Reboreda de que foi ela que teve de pegar fogo ao casaco bordeaux do meu avô Augusto Couto, por ser um detalhe que complementava a sua ficha na PIDE. Percebi rapidamente que roupas não são só roupas, são parte da vida e da profundidade que conseguimos ver em todos os detalhes.

E este património estético acaba por ganhar nuances igualmente profundas no meu primeiro romance, “Sinais de Fumo, em que conseguimos perceber pela forma de vestir dos personagens se são betinhos a quererem parecer chungas, ou se são chungas a tentar disfarçar que não o são. Obrigado ao Bairro do Viso por me fazer prestar atenção a esta diferença.

O texto escrito é da inteira responsabilidade do autor.

Alex Couto.

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