Na religião hindu, antes de alguém mudar de casa ou demolir a residência, é comum realizar rituais específicos, como forma de agradecimento, despedida ou purificação do lar. O que para muita gente poderia ser uma ocasião triste, neste caso, é um momento de respeito, para pedir permissão aos ancestrais e criar boa energia para os futuros habitantes do espaço.
Zi Fernandes registou esta prática, pela primeira vez, durante uma visita a Bali, na Indonésia, em 2023. “Estava a trabalhar no Japão após uma longa viagem e decidi conhecer a ilha, sem planear. O local onde fiquei hospedada ia ser demolido e, quando cheguei, testemunhei aquela cerimónia muito bonita”, conta à NiT.
A fotógrafa, de 35 anos, tinha previsto passar duas semanas no destino, mas a estadia acabou por se prolongar dois meses e meio. Durante esse período, captou o maior número de retratos que conseguiu das famílias locais e dos espaços que habitam, criando “memórias que vão ganhando cada vez mais valor”, acrescenta.
Quando regressou a Portugal, onde vive há uma década, a criativa brasileira decidiu lançar um projeto que representa “uma despedida em imagens”, através de sessões fotográficas das casas onde as pessoas viveram. O objetivo é captar os últimos momentos destas pessoas nas divisões onde foram felizes.
“Como faço muitos batizados, notava que as famílias aumentavam e havia muitas mudanças de casa. Nas sessões, diziam-me que queriam ter memórias daquele lar antes da mudança”, recorda Zi. “Senti que faltava algo mais específico para eternizar aquelas memórias do sítio onde os miúdos dão os primeiros passos e aprendem a falar.”
Quando começou, percebeu que estava a acompanhar a história dessas pessoas. É o caso de um casal em destaque no seu portefólio, que captou na mesma poltrona durante a primeira gravidez da mulher, após o nascimento do primeiro filho e, por fim, com dois filhos, antes da mudança para um local maior.
Para Zi, este projeto trata-se de “um trabalho muito cinematográfico”, revela. “Fatores externos são cada vez menos importantes. Se a casa tem mais ou menos luz já não é uma preocupação, o que importa é a sensibilidade para entender a história, a vivência e os lugares importantes.”
A fotógrafa destaca ainda “o poder terapêutico” destas imagens, do que sentiu com esta família em específico, na casa com vista para Lisboa. “Como tive um pai ausente e a minha mãe faleceu, trabalhar com fotografia de família foi uma das formas que encontrei para me curar”, confessa. “Quando me sinto perdida na vida adulta, vou a imagens antigas e recordo o que adorava em miúda. É um processo de autoconhecimento.”
Estas sessões juntam várias peças da história do casal, pelo que o processo começa com uma conversa com os protagonistas. Zi pergunta onde é que o casal gosta de passar tempo, em que áreas é que os filhos gostam de brincar e onde é que têm memórias felizes, por exemplo. “Penso: o que é que vai ser insubstituível nesta história?’”
Para a artista, “é como escrever uma crónica, mas com uma máquina a substituir o papel e a caneta”. “O que me diferencia é olhar para aquelas pessoas e imaginar um roteiro, ter um olhar mais poético e sensível. Leio muito, consumo muita arte e estou sempre a viajar para entender quem é diferente de mim”, explica.
Zi acrescenta ainda que não obedece a regras de composição, sendo que uma fotografia pode estar “mais torta ou arrastada”, mas não pode ser tirada sem que os sentimentos sejam captados. “O meu maior prazer é quando os clientes recebem o resultado e dizem que o que está naquelas imagens é o que realmente são. Fico tão feliz.”
No ano passado, a fotógrafa passou por uma experiência semelhante, quando regressou a uma casa, no Brasil, onde tinha estado, pela última vez, há quase duas décadas. “Os móveis estavam intactos e o frigorífico todo enferrujado. Foi também por isso que voltei para este tema, porque me deu forma como imigrante brasileira”, continua Zi.
Natural do Rio de Janeiro, mudou-se para Portugal em 2015 com o objetivo de “regressar às origens”, já que o bisavô era português. Pelo meio, ainda viveu quatro anos em Dublin, na Irlanda. “A cultura portuguesa é completamente familiar para mim e reparei que me sentia mais em casa aqui do que do outro lado do Atlântico.”
Durante este percurso, sempre trabalhou como fotógrafa, área à qual se dedica desde os 18 anos. Zi estudou numa escola de artes no Brasil, onde tinha aulas extracurriculares de fotografia e cinema. A partir do momento em que agarrou numa máquina fotográfica, na primeira aula, nunca mais a largou.
Apesar das dificuldades, acredita que oferece um serviço que está em falta. “Há uns anos, era impossível pensar em fotografar casas. Sei que as famílias que trabalham comigo há muitos anos estão abertas a isso, mas quero estender a outras pessoas. É algo que exige muito esforço e trabalho.”
Embora viva em Lisboa, Zi trabalha pelo mundo inteiro, dividindo o seu tempo entre o Porto, o Algarve e cidades em Espanha, como Madrid ou Barcelona. Algumas temporadas são ainda passadas a explorar o mercado sul e norte-americano, viajando pelo Brasil, Argentina ou EUA.
No início de março, foi revelada uma campanha que fez com a marca portuguesa Portugal Jewels, sediada nos EUA. “As marcas estão com uma linguagem mais emotiva e há cada vez mais que me procuram, porque querem uma linguagem familiar.”
“O que eu quero é conquistar clientes que percebam que todas as famílias são caóticas, todas as sessões são caóticas. E que deixem de ter esse medo de não serem perfeitas”, conclui. “Quanto mais felizes forem a mostrar essas imperfeições, mais fácil é captar as memórias das mães portuguesas, que quero que sejam as protagonistas das minhas histórias.”
Os preços das sessões de Zi Fernandes começam a partir dos 220€, no caso das mais curtas, e podem chegar aos 900€, nos casos em que passa o dia inteiro com a família. As marcações podem ser feitas online.
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