“É uma humilhação racista e eurocêntrica. Quase 500 mil mortos e França decide fazer um musical”, lê-se na publicação viral que se refere às vítimas do narcotráfico, um tema que está no centro do filme mais nomeado para os Óscares de 2025, e que tem provocado reações extremas, como conclui o autor do texto, que conclui: “O México odeia ‘Emilia Pérez'”.
O crítico não está sozinho. Nas últimas semanas, sobretudo desde que o filme de Jacques Audiard recebeu umas impressionantes 13 nomeações para os prémios da Academia, a polémica tem ganho uma dimensão global. A produção francesa revelou-se um fenómeno paradoxal: transforma a brutalidade do mundo dos cartéis e raptos no México num musical que foi ovacionado em festivais internacionais e até recebeu prémios em Cannes.
Fora das salas e dos corredores de Hollywood, os aplausos são coisa rara. O que deveria ser um passeio rumo ao topo por parte de “Emilia Pérez”, transformou-se um campo de batalha onde se discute representação, sensibilidade cultural e a ética (ou falta dela) no momento de transformar tragédias reais em canções.
A narrativa arranca com a vida dupla de Juan “Manitas” Del Monte, um chefe de cartel que decide fingir a sua morte para renascer como Emilia Pérez e começa a viver a sua verdadeira identidade como mulher transgénero. Esta história, inspirada no romance “Écoute” de Boris Razon, oferece uma exploração de identidade, violência e busca por redenção, entrelaçado com canções originais que tentam dar voz à complexidade das emoções e dilemas das personagens
O sucesso internacional, que começou com um troféu em Cannes e se estendeu a múltiplas vitórias nos Globos de Ouro, ilustra, para os críticos e os grandes prémios da indústria, uma apreciação pela inovação narrativa e a profundidade das atuações, especialmente de Karla Sofía Gascón, nomeada ao Óscar de Melhor Atriz.
Na Internet, porém, vários argumentam que o filme glorifica o processo da vaginoplastia e, de forma mais grave, trivializa a dor real dos familiares de pessoas que foram raptadas. Há décadas que o México enfrenta crimes relacionados com guerras entre cartéis que faz milhares de vítimas. Em agosto de 2024, havia 116,386 pessoas oficialmente desaparecidas, segundo um relatório do Registo Nacional de Pessoas Desaparecidas e Não Localizadas.
Mikaelah Drullard, ativista trans, sublinhou nas redes sociais que um musical foi a pior escolha possível para retratar esta realidade. “Não vejo os pais das 43 crianças que desapareceram em Ayotzinapa a cantarem à mesa ‘Onde é que estão os nossos filhos que desaparecem diariamente’.”
Outras críticas debruçam-se sobre a autenticidade cultural. A escolha de filmar a maior parte do filme em França e a escassez de atores mexicanos no elenco principal, com apenas Adriana Paz representar o país na equipa inteira, têm sido pontos de grande controvérsia. Desde a estreia do filme em novembro de 2024 que o público mexicano se tem manifestado relativamente à frustração que sentem com o que entendem ser uma representação superficial de alguém que apenas observa de fora os problemas profundos do país.
Zoe Saldaña, uma das estrelas do elenco, defendeu-se publicamente e colocou-se, naturalmente, do lado do filme e do realizador. “Acho que estamos a viver tempos muito sensíveis, em que as comunidades se expressam de forma muito vocal sobre serem representadas com precisão”, começa por contar à BBC. “Oscilo entre respeitar isso, que é principalmente o meu objetivo, e também dar espaço para cineastas ou contadores de histórias gentis terem uma abordagem muito especial a estes temas, mesmo que não façam parte dessa comunidade. Porque, por vezes, podem ter a melhor história para contar. E acho que o Jacques [Audiard] sempre foi respeitoso, sempre muito cuidadoso, na forma como abordava isso.”
O que podia ter sido uma declaração de paz por parte da atriz, acabou por render ainda mais críticas a “Emilia Pérez”. Audiard, de 72 anos, revelou durante uma entrevista num festival de cinema que não tinha estudado a história do México. “Já sabia o que precisava de saber”, comentou.
Os ataques à produção não vêm apenas do México, mas também da comunidade LGBTQIA. A associação norte-americana Gay & Lesbian Alliance Against Defamation (GLAAD) considerou o filme “um passo atrás” no que diz respeito aos direitos gay e trans. O foco da história não está na transição de Emilia, mas sim na destruição causada pela sua vida passada e “na presunção de que pode redimir-se pelos seus atos ao mudar de género”, disse a organização no X.
Karla Sofía Gascón, que se tornou na primeira mulher trans a ser nomeada a um Óscar nas principais categorias, garante que abordou Audiard com perguntas sobre as motivações de Emilia porque “se for apenas para fugir do mundo do crime, acaba por ser completamente diferente do que caso o fizesse para viver de forma autêntica”, disse à “Radio Times”.
A GLAAD, porém, não recebeu a afirmação de braços abertos e decidiu não nomear o filme para a sua própria gala de prémios. “Recicla estereótipos, lugares-comuns e clichés sobre pessoas trans, como a ideia de que mulheres trans são inerentemente malvadas e da família surpreendida e deixada para trás após a transição.”
“A transição dela é apresentada como uma absolvição, usada como ferramenta de engano e transformada na razão para a sua redenção. É uma ideia da realidade trans completamente moldada pela imaginação de um homem cisgénero”, rematou a revista LGBTQIA+ “Them”.
Farta de ser atacada diariamente pela própria comunidade — os tweets virais de ódio ao filme têm sido constantes desde o anúncio dos nomeados aos Óscares —, Gascón ripostou. “Devem ser muito equilibrados para criticarem o trabalho de 700 pessoas sentados no vosso sofá, ao lado da PlayStation,” disse ao “The Hollywood Reporter”. “Eles dizem que falam por toda a gente. Deixem-me dizer-vos: ser da comunidade LGBTQIA+ não faz com que sejam menos idiotas.”
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