O filme “Mosquito”, do realizador João Nuno Pinto e que abriu o International Film Festival Rotterdam 2020, chegou às salas de cinema na passada quinta-feira, 5 de março. A produção que recupera um pedaço da história da colonização portuguesa apagado da memória do País foi apresentada numa sessão especial no Cinema Charlot — Auditório Municipal no dia seguinte. O evento contou com a presença de João Nuno Pinto e do protagonista de “Mosquito”, João Nunes Monteiro.
A longa-metragem passa-se em Moçambique no ano de 1917 durante a Primeira Guerra Mundial. A história é inspirada na chegada do avô do realizador a África ao serviço do 4.º Corpo Expedicionário Português. “Com a guerra no pensamento e a pátria no coração”. É assim que se apresenta o jovem Zacarias (João Nunes Monteiro). Entre a inocência da idade e a arrogância de um membro do exército colonizador, Zacarias chega ao mato africano com um objetivo muito claro: honrar a pátria e ser motivo de orgulho dos seus pais.
Ao longo de 122 minutos, o espectador acompanha as aventuras do soldado. Sente as suas angústias, o calor, o frio, o medo e as alucinações próprias da malária, doença que acaba por contrair durante a sua passagem por Moçambique. A New in Setúbal esteve presente na sessão especial no Cinema Charlot e falou com o realizador português, que partilhou alguns pormenores do filme.
Em que é que se inspirou para criar a história?
O filme é inspirado no meu avó Zacarias, que esteve em África durante a Primeira Guerra Mundial. Quando pensei em fazer o filme há cerca de sete anos, aquilo que mais me motivou foi contar a história do meu avô, porque como não o conheci, seria uma forma de me aproximar dele e entender os acontecimentos por que passou. Só quando fui pesquisar mais sobre o assunto é que entendi a verdadeira dimensão do horror que tinha acontecido. Foi nessa altura que decidi afastar-me da história original e falar de outros assuntos relacionados com esta guerra, trazendo para a discussão o tema do colonialismo. A história do filme segue a estrutura de uma tragédia clássica grega. O que torna esta produção única é que essa narrativa clássica e europeia se mistura com a cultura africana.
Como foi o processo de preparação do filme?
Fizemos uma pesquisa muito grande do que foi aquela guerra. Fomos para Moçambique tentar entender o olhar africano sobre o conflito. Da guerra em si não há muita informação. Quase ninguém sabe que os portugueses combateram na Primeira Guerra Mundial, em África. O que nos ensinam na escola é que os portugueses estiveram em França. Mas se pensarmos bem, morreram mais soldados portugueses em Angola e Moçambique do que em França. A questão é que como se tratou de uma guerra tão insana, que ia contra a narrativa e o princípio da superioridade da nação portuguesa, o Estado Novo censurou. Não se podia escrever sobre aquela guerra e isso levou a uma amnésia geral imposta à população. Por isso, este filme acaba por ser um retrato do que significou ser um império colonizador. Mostrar a usurpação da identidade, da terra e da cultura de um povo, que foi uma coisa que nós fizemos, mas que foi totalmente apagada da História para que não houvesse discussão.
Como correram as gravações?
Estivemos dois meses a gravar em África. Foi difícil, porque como se trata de uma espécie de road movie, nós estávamos sempre em movimento. O lugar onde ficámos mais tempo foi na aldeia das mulheres. Estivemos cerca de uma semana e meia. De resto andámos sempre a viajar, a dormir e a comer precariamente. Mas todas essas condições também se refletiram no filme.
Alguns dos diálogos entre o Zacarias e as personagens estrangeiras não têm legendas. Esta opção foi propositada?
Sim. Durante todo o filme nós acompanhamos o Zacarias, entendemos o que ele entende, vemos o mesmo que ele vê e não percebemos o que ele não compreende. Por isso, nos diálogos com as mulheres africanas e com o soldado alemão não foram colocadas legendas exatamente porque o Zacarias não entende o que eles dizem. Achei que seria uma forma de o espectador ficar na mesma posição que a personagem e, de certo modo, ser solidário com ele.
O título “Mosquito” está apenas relacionado com a malária do protagonista ou tem outro significado?
Não, tem várias leituras. Mas a principal é que o mosquito, apesar de ser um inseto aparentemente insignificante, também pode ser mortal e espalhar a doença à sua volta. E neste caso concreto, a metáfora pode ser aplicada não só ao soldado Zacarias, que embora franzino tem o poder de matar, mas também a Portugal que é um País pequenino mas que foi dono de um império colonial gigante.
Além do colonialismo, outro dos temas abordados no filme é o racismo. Considera ainda mais urgente apelar ao debate sobre o assunto atualmente?
Sim, este é um filme ainda mais importante nos dias de hoje. De repente a história do colonialismo e racismo volta a estar em cima da mesa. Nesse sentido, o filme contribui para esse debate e reflexão. Atualmente, a forma como nós europeus olhamos o mundo continua a ser muito eurocêntrica, porque ainda carregamos uma herança de séculos de colonização. Ainda hoje manifestamos essa carga em atitudes no nosso dia a dia. De certeza que nenhum de nós se considera racista mas todos temos atitudes desse género, seja numa piada ou comentário que são discriminatórios e isso deve-se a uma história de superioridade que carregamos connosco. Na minha opinião, ninguém nasce racista ou colonizador. É uma narrativa construída e que tem a ver com a necessidade de colonizar. E havia mesmo essa urgência de colonizar por questões económicas, daí a elaboração de uma narrativa para justificar esse ato de ocuparmos um território que não é nosso. Para mim, o primeiro passo para uma mudança de mentalidade será nós reconhecermos que fizemos isso e perceber onde podemos melhorar enquanto povo.
O filme vai estar em exibição no Cinema Charlot até esta quarta-feira, 11 de março, de segunda a sexta-feira às 21h30 e ao fim de semana às 16 horas e 21h30. Os bilhetes custam 4,50€ (público em geral) e 3,50€ (estudantes, detentores de cartão jovem e pessoas com mais de 65 anos).
O elenco é composto pelos atores João Nunes Monteiro, Sebastian Jehkul, Filipe Duarte, Josefina Massango e conta com a participação especial do fadista Camané e de Ana Magaia.