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“O amor é um prato de sopa”: a nova música de Et Toi Michel é uma homenagem à sua mãe

A frase de conforto dita pela mãe de João Mota foi o mote para o tema lançado no dia 24 de outubro.
Fotografia de Helena Tomás.

Foi uma discussão com a mãe, que deu origem à nova música do artista setubalense Et Toi Michel, “O amor é um prato de sopa”. Estamos a falar de um amor não correspondido em tempos de escola e de palavras de conforto, que ficaram na memória de João Miguel Mota. “A minha mãe queria confortar-me e fê-lo como sabia, à bruta. Então, lançou esta frase para o ar e eu nunca me esqueci dela. Não porque concorde com o significado que ela lhe tinha atribuído, mas porque continuei a discutir essa ideia com ela na minha cabeça. Para mim, uma coisa não vive sem a outra e não há sopa sem amor”, começa por contar o músico à New in Setúbal.

A canção foi lançada na passada terça-feira, 24 de outubro. Este é o último tema de Et Toi Michel, nome usado pelo cantautor de 44 anos, e nasceu precisamente desse episódio com a sua já falecida mãe. “Foi uma expressão, que continuou a ecoar na minha cabeça desde a adolescência e que, infelizmente, não pude continuar a discutir com ela. Mas escrever canções também serve para continuar conversas e abrir possibilidades com as pessoas, que vamos perdendo na vida. Acho que dei a volta ao argumento que ela usava como piada e estou seguro de que haveríamos de nos rir os dois”, confessa. João é formado em técnicas de Áudio pela Escola Profissional de Música de Almada e, posteriormente, pela ETIC. Tem também uma licenciatura em Artes do Espetáculo pela Faculdade de Letras.

A música esteve presente na sua vida desde “muito cedo” — passou, aliás, de geração em geração. “O meu pai ainda hoje canta fado e quando era pequeno era comum ir vê-lo cantar a todo o lado. A minha avó costumava cantar em casa para as plantas ou enquanto trabalhava a remendar as redes do meu avô. O meu avô, por sua vez, tocava muito bem harmónica polifónica e reco-reco. A minha mãe também tinha boa voz e inventava letras e canções, em jeito de paródia. Acho que isso tudo está no meu ADN. Depois fui descobrindo outros interesses musicais. Ofereceram-me a minha primeira guitarra aos 16 anos. Ainda hoje não toco muito bem, mas sempre gostei de cantar e escrever canções”, acrescenta.

Não se recorda ao certo qual foi a primeira música que compôs, mas conta que teve um grupo, com timorenses, enquanto estudava na Escola da Bela Vista. “Escrevíamos as nossas próprias canções. Depois faltei ao nosso primeiro concerto com público, porque tinha muita vergonha”, recorda. O Et Toi Michel é um artista, mas existe sempre o João. “É um miúdo de Setúbal, que gosta de escrever canções e, acima de tudo, de brincar com as coisas, principalmente com as mais sérias. O mundo consegue ser um lugar muito feio e aprendi que saber brincar é uma arma contra tudo o que de desumano há por aí. Levo a brincadeira muito a sério. E gosto acima de tudo da companhia de outros brincalhões”, explica.

Fotografia de Helena Tomás.

Existem lembranças eternas e características singulares nas pessoas que nos deixam. Da mãe, João recorda o riso. “A minha mãe era muito brincalhona e irónica. Tinha uma visão muito própria do mundo e gostava de gozar com tudo, mesmo com ela própria. Acho que herdei essa faceta dela. Às vezes tirava-me do sério, discutíamos muito, mas havia sempre qualquer coisa que nos fazia rir mais cedo ou mais tarde. Adorava animais e detestava cozinhar, mas fazia-o muito bem quando queria. Apesar de nunca ter sido fã das sopas dela, preferia as da minha avó. Até isso hoje tem piada. Mas fazia um arroz doce de outro mundo e uns ovos de tomatada ótimos”, recorda.

Todos estes ingredientes se juntaram para compor o prato final, que foi a música. “A comida é uma parte fundamental da vida. Comer algo de que se gosta é tão importante quanto ouvir uma música, ver um grande filme ou até estarmos apaixonados. Talvez tenha o coração ligado às papilas gustativas. Estou sempre feliz durante uma refeição. E se perco o apetite é porque estou deprimido. E depois uma sopa é sempre um lugar de partilha. Nunca ninguém no mundo fez uma sopa apenas para si, ou eu espero que não”, confessa.

O vídeo foi da responsabilidade do realizador e criativo setubalense, Leonardo Silva, com a ajuda da artista plástica Paula Moita. O tema conta ainda com a participação de Zé Miguel Zambujo, no clarinete, e Sérgio Mendes no violoncelo, que é também responsável pela produção áudio.

A edição digital é da independente Malafamado Records, com o apoio à edição de Pedro Franco (Um Corpo Estranho). O artista agradece ainda a toda a comunidade dentro e fora de Setúbal que o tem seguido e apoiado, com destaque para a União Setubalense, Teatro Estúdio Fontenova, Patrícia Pereira Paixão e Mila.

O processo para chegar ao produto final também não é fácil, mas a essência d’ “O amor é um prato de sopa” viveu sempre com o artista setubalense. “Existem canções que me dão muito trabalho. Saem a ferros e têm partos difíceis, seja pela letra ou pelos arranjos. Não sou nada perfecionista, mas sou muito sensível no que toca às mensagens das canções. Não me importa muito se os instrumentos estão muito afinados ou os tempos estão certos, mas sou muito exigente quanto à alma de uma canção. No caso desta, já tinha tudo maturado, desde sempre. Na verdade, acho que a canção sempre existiu, faltava apurar, como qualquer cozinhado”.

Muitas das vezes, falta inspiração, mas João tornou os momentos mais complicados parte do processo e, em vez de perder tempo, decidiu ganhá-lo. “Nem sei se acredito muito nessa coisa da inspiração. Acho que sou agnóstico em quase tudo. Mas estou certo de que sou um dos canais do mundo que recebe e transmite frequências. Somos todos. As minhas histórias e pensamentos não são meus, são herdados. Não inventei nada. Quando cá cheguei, já existiam guitarras, já tinham inventado a língua e já se cantava. A parte a que chamam inspiração, eu chamo-lhe tempo. E, para mim, o tempo é para ocupar o máximo possível a brincar. Esta é a minha brincadeira”, refere.

Sobre o significado da música, Et Toi Michel garante que a letra fala por si, acrescentando: “Na verdade, fico muito feliz desde logo se a ouvirem e se assistirem ao vídeo que o Leonardo fez. Fico feliz porque existem mais pessoas, além de mim. O Sérgio Mendes, o Zé Zambujo, o Pedro Franco, a Paula Moita, a mãe do Leonardo que nos emprestou a colher de pau, a União Setubalense onde filmámos, o Teatro Estúdio Fontenova que nos emprestou material, enfim, esta sopa é rica de pessoas e afetos”, remata. Siga o Instagram de Et Toi Michel e veja pedaços da vida do artista partilhados na rede social. 

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