Todos os concertos do Trio do Rio Azul eram “momentos de muito riso e brincadeira”, recorda Manuel Patrício, que tocava acordeão no mítico grupo setubalense. O truque antes dos espetáculos era sempre o mesmo e era infalível: “Nunca íamos para os espetáculos zangados”, não interessava tudo o que tivesse acontecido até àquele momento.
A primeira pessoa a prever o futuro brilhante que Manuel iria ter no mundo da música foi o seu pai, que reconheceu o talento e amor pela área quando ele tinha apenas nove anos. Na verdade, o que Manuel começou por aprender a tocar foi acordeão — e foi precisamente este instrumento que o acompanhou nos tempos áureos do grupo setubalense que fundou, o Trio do Rio Azul. Agora, com 81 anos, garante que escreveu mais de 400 composições ao longo da carreira.
Natural de Figueiras, no concelho de Coruche, foi por lá que estudou música a partir dos 11 anos, quando ia para as aulas, “sozinho, de bicicleta ou de comboio”. Na escola, foi colega de Salgueiro Maia no último ano da primaria, e considera ter sido “um bom aluno porque passava de ano”. Manuel não era próximo do Capitão de Abril, mas, do pouco que se lembra, recorda uma tarde em que plantaram árvores, das “brincadeiras de miúdos” e, claro, de “estar longe de imaginar que ia ser um herói nacional”.
Mais tarde, aos 19 anos, conheceu a mulher, Prudência, que também era acordeonista. Um simples namoro transformou-se num casamento forçado, depois de ela engravidar. A filha, Isabel, acabou por falecer quando tinha apenas oite meses, de morte súbita. Entretanto, mudaram-se para Pegões e Manuel foi para a tropa, onde fez parte das telecomunicações do exército. Por isso mesmo, destacaram-no como chefe dos postos de Elvas, Estremoz e Vendas Novas.
Em 1970, mudou-se para Setúbal, para trabalhar como motorista da Inapa, mas acabou por ser despedido dois anos depois. Por isso, decidiu trabalhar na construção das torres de Tróia, para a Torralta. Ao mesmo tempo, estudava no Liceu de Setúbal (atual Escola Secundária Du Bocage). Durante todo este período manteve sempre a ligado à música. E até teve aulas com o Zeca Afonso, no Círculo Cultural de Setúbal, onde era sócio.
“Era um homem excelente. Uma pessoa de bem, um grande português e um grande poeta. Aprendi muito com ele. Eu e todos. Fazíamos muitas noitadas em que o dinheiro era revertido para os presos políticos. E isto tudo sobre a orientação de Zeca Afonso. Todos os momentos eram bem passados”, revela à NiS.
Como professor, Zeca Afonso “não dava a matéria exaustivamente, desenvolvia tudo muito à maneira dele, o que era interessante”. Nos jantares que realizavam — e que eram organizados sempre às escondidas, durante o Estado Novo —, a comida era o menos importante. A prioridade eram as coletas que se faziam num restaurante em específico, o Caferra, ao lado do Mercado do Livramento.
O músico diz que aprendeu ainda com Zeca, “que os militares entregaram o poder aos civis e eles têm a obrigação de governar o País”.
“Nunca estive no círculo de amigos, a proximidade deveu-se ao estudo e ao círculo. Ele era um homem sério e que falava a verdade. Um líder que não regimentava as pessoas. Era modesto e simpático”, assegura.
Manuel gostava de ter seguido Ciência Musicais, mas em Setúbal não existia essa formação e a “a vida não proporcionava ir para Lisboa”. Resignado, continuou a estudar e até conseguiu tirar o diploma de professor de acordeão, no Instituto Nacional Matono. Pelo meio, passou quatro anos na conservatória, além das mais de “400 composições”, de acordeão e piano, que escreveu para a Sociedade Portuguesa de Autores. Foi ainda presidente da Rádio Voz de Setúbal, depois do período do 25 de Abril, e fundador da Associação de Acordeonistas de Portugal.
A formação do icónico Trio do Rio Azul
Enquanto continuava a explorar a paixão pelos ritmos e melodias, e a trabalhar na Torralta, Manuel Patrício decidiu que estava na altura de criar um grupo de música a sério em Setúbal. Avaliou os colegas e escolheu os setubalenses Vítor Pereira e Carlos José (de nome artístico Carlos Montenegro), para formar o Trio do Rio Azul. O nome, como se percebe, era uma homenagem às águas cristalinas do Sado.
“Fizemos tanta coisa neste País. Gravámos mais dez discos e fomos apresentá-los na rádio e na televisão. Não consigo contar a quantidade de concertos que demos em Setúbal. Estivámos no top na altura da Madalena Iglesias e Simone de Oliveira. E toda a geração setubalense também já era muito rica em termo musicais. Havia bons artistas e bons conjuntos”, considera Manuel.
Gosta de todas as músicas que cantavam, mas “Saudade do Rio Azul” é, sem dúvida, uma das favoritas.
O Trio do Rio Azul teve duas fases distintas. A primeira terminou em 1982, por “alguns desentendimentos” e também porque não existia “nenhum manager” que conseguisse gerir o grupo. Voltaram a reunir-se em 2000, para o lançamento do tema “Vai lá Vai, Até a Barraca Abana”, com letra e música de Manuel.
Todos os concertos eram “divertidos” e a rotina nunca mudava. Os três amigos ensaiavam, tocavam e iam para casa. Depois dos espetáculos, chegaram até a receber cartas e telefonemas de fãs, mas nunca deram importância.
“Se fossemos a ligar a isso, acabava tudo logo ao início. O público gostava de nós, mas não era nenhuma loucura. Sabiam as músicas mais conhecidas, como ‘Os Calções da Susete’”, elucida.
“Tivemos sempre muitas emoções. E eu era o mais caro do grupo porque um acordeão custa 10 mil euros. Na altura dos contos, esse valor dava para comprar um bom automóvel”, brinca, enquanto recorda os bons momentos nas coletividades e também as homenagens que foram sendo feitas ao longo dos anos.
“A minha memória já me falha e não consigo recordar um acontecimento em específico porque foram todos muito marcantes e que construíram a minha história”, diz Manuel.
Ainda assim, há uma estatística que ele se lembra bem: “60 por cento do reportório do Rio Azul é da minha autoria. “Demos muitos espetáculos e há sempre coisas belas. Da paisagem ao grito dos setubalenses. Eu gosto muito da maneira como falam e inspira-me. Dominámos uma sangria de espectadores”.
Com mais ou menos sucesso, no final, o Trio do Rio Azul acabou “suavamente”, como “as mortes que veem e não se sentem”.
O amor eterno pela música
Volvidos 70 anos desde que tocou acordeão pela primeira vez, Manuel Patrício garante que continua a estudar e a explorar ao máximo a sua música, que considera “um bonito mistério”. E ainda arranja tempo para gerir o Instituto Musical Patrício, que fundou em 1977 e que conta, atualmente, com cerca de 30 alunos. Ao mesmo tempo, tem uma loja com instrumentos e outros elementos, a Viva a Música.
“Tenho muita pena de não ter tempo para terminar outros projetos. Ainda tenho meu livro de Ciências Musicais e como não tenho formação, por exemplo, em Ciência e Matemática — áreas que a música exige —, tenho de ir aprendendo por mim próprio, cada vez mais. Tenho de ler muito e experimentar muito”.
E como se tudo isto não bastasse, ainda está a preparar o lançamento do livro “Tripauta”, sobre teoria musical.