A cantora A garota não conquistou o Globo de Ouro para Melhor Intérprete, na gala da SIC que decorreu no passado domingo, 1 de outubro, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Para esta categoria estavam nomeados os músicos Carminho, Ana Moura, David Bruno e Nininho Vaz Maia. No palco a intérprete não fez um discurso comum. Aliás, o seu monólogo transformou-se num dos principais tópicos nas redes sociais nas horas seguintes. A garota não é um poema, por isso, não havia outra maneira de se expressar sem ser a declamar um texto da sua autoria.
Orgulhosamente setubalense, Cátia Oliveira — o nome verdadeiro do alter ego A garota não — nasceu em 1983. Na cerimónia da SIC, durante o discurso, afirmou que aquele dia era o aniversário do seu pai, que estava mesmo ali na plateia.
“Precisava de um presente para lhe dar por tudo o que ele me deu”, começou por dizer. Depois agradeceu a todas as pessoas que têm estado ao seu lado ao longo da carreira: “Acompanham-me na estrada, incansáveis e generosos”.
A verdade é que a música esteve sempre presente na vida da artista. Nasceu no Bairro 2 de Abril, uma das zonas com pior reputação na cidade — e onde viveu até aos 25 anos. Durante a infância e a adolescência, Cátia habituou-se a ouvir batidas altas no seu prédio, de vários géneros musicais. Isso fez com que crescesse ao som de ritmos tão diferentes como José Afonso ou Gipsy Kings. O pai e o irmão foram outras duas enormes influências na formação da sua identidade musical. O primeiro levava para casa os ideais da liberdade e democracia; o segundo fê-la parar para ouvir boa música, como ela descreve. Por outro lado, a mãe adorava cantar fado e era uma fã incondicional de Julio Iglesias. Agora, aos 40 anos, A garota não toca guitarra, piano e percussão. E ainda canta e compõe os seus temas.
Em entrevista à New in Setúbal, Cátia afirmou que a inspiração para as canções surge das próprias experiências e vivências pessoais. O álbum de estreia, “Rua das Marimbas”, foi apresentado em abril de 2019. O segundo disco chama-se “2 de Abril” e foi lançado em 2022, dia 2 de abril. “É a data que decreta a Constituição Portuguesa, o nome do bairro onde nasci e, agora, o nome deste disco, que fala do quotidiano sem glamour, de movimentos perpétuos, da fé que perdemos. Mas também fala de horizonte e de fôlego infinito. De honrarmos a vida. E de a celebrarmos com amigos”.
O poema lido durante o discurso
“Não tenho jeito para discursos e por isso fiz um poema para vos dizer coisas que me têm estado à flor da pele”, explicou ao maestro Nuno Feist pouco depois de ter subido ao palco no Coliseu. Depois, fez questão de pedir que apenas se ouvisse a sua voz ao longo dos minutos seguintes. “Maestro, eu sou do 2 de Abril, que é um bairro lixado em Setúbal. Espera só um bocadinho até ao final”. Seguiu-se este poema da autora setubalense.
“Vivemos o tempo dos Budas, das flores de plástico e das cómodas douradas
E rimos muito alto, por cima da música alta das esplanadas
Vivemos o tempo da Kombucha, do coaching, das soft skills e da gratidão
Saibamos agradecer aos bancos os juros que nos cobram na habitação
Vivemos o tempo mais corrido de sempre
Das metas, dos objetivos, do ‘nem que me esfarrape’
Não há esforço que não valha a pena, seremos todos Luft, Tap
Vivemos tempo de maioria absoluta, de posso e mando, de meritocracia
O mérito mede-se a partir dos dentes, das notas do colégio ou da demagogia?
Obrigada por esta oportunidade, um Globo de Ouro nas mãos de um ser tão falho
Há quem tenha muita sorte, A sorte, a mim, tem-me dado muito trabalho”.