“Não foi só a ilustração que me atraiu, foi especialmente o formato do álbum ilustrado, que é diferente dos livros ilustrados que tinha quando era pequena”. Esta é uma das frases que a ilustradora Catarina Sobral, 38 anos, usa para explicar como surgiu o interesse em ilustrar livros infantis, profissão que lhe valeu o Prémio Nacional de Ilustração de 2023.
O galardão distingue o conjunto de ilustrações originais que compõem a publicação infantojuvenil “Fantasmas, Bananas e Avestruzes”, da autoria de Catarina, editada no âmbito da coleção literária “Missão: Democracia” da Assembleia da República. A artista é uma das convidadas da Festa da Ilustração de Setúbal, que começa este sábado, 5 de outubro, com uma exposição na Casa da Cultura. Catarina Sobral é também a autora da ilustração escolhida para a imagem da décima edição.
Nasceu em Coimbra, formou-se em Design e tem mestrado em Ilustração. É ilustradora, escritora de livros ilustrados e diretora de filmes de animação. Em 2011, a Orfeu Negro publicou o seu primeiro livro e, desde então, ilustrou 20 obras e escreveu 14 delas. Apesar do gosto pela área, nem sempre quis seguir esta profissão, como explica em entrevista à NiS.
Como é que surge esta paixão pela ilustração?
Foi surgindo aos poucos. No meu 12.º ano, fui aluna do Emílio Remelhe, que colabora frequentemente com as Edições Eterogémeas, e nos mostrou algumas ilustrações do Gémeo Luís. Depois, quando estava na Universidade, outro professor mostrou-nos álbuns do Bruno Munari e do Saul Bass. Entretanto, a editora Planeta Tangerina estava a começar a publicar e passei a procurar as secções infantis sempre que ia a uma livraria. Comecei a ver os catálogos da Ilustração Portuguesa, publicados pela extinta Bedeteca e a prestar atenção às ilustrações nos jornais. Não foi só a ilustração que me atraiu, foi especialmente o formato do álbum ilustrado, que é diferente dos livros ilustrados que tinha quando era pequena.
O que faz uma ilustradora e uma autora de livros infantis? Separa as duas vertentes ou é complicado?
Quando me encomendam só uma ilustração, ou um conjunto de ilustrações para outro formato, sou só ilustradora. Mas quando faço álbuns, independentemente de ser ou não autora do texto, trato da narração visual do livro e isso também é autoria. Se escrevo os livros, a ligação entre o texto e a imagem é trabalhada de forma mais íntima, às vezes cresce em conjunto, sendo articulada com mais liberdade e maior fluidez. Aí, não há separação, daí que existam ilustradores/escritores que se identificam como picture book makers, ou ilustradores.
E o que significa, para si, a sua profissão? Não só objetivamente, mas por saber que ao acordar todos os dias é aquilo que vai fazer.
Como qualquer profissão artística, a ilustração tem uma função cultural e política. A experiência artística é ativa e pertence a quem a recebe: pode formar opiniões, emocionar, criar memórias. Pode levar alguns recetores a repensar o pensamento, a estabelecer a sua identidade, a conhecer outro (eliminar o medo dos outros) e/ou levá-los à ação. No caso do livro infantil, ajuda também a promover a leitura. Não penso nisto todos os dias quando acordo, mas penso sobretudo em divertir o leitor. Mas sei que é uma profissão muito séria. A brincadeira é uma coisa muito séria.
Tem sempre inspiração? E quando não tem, onde arranja?
Há um misticismo em torno da ideia da inspiração que gostava de desmontar. É verdade, nem sempre me sinto inspirada, mas só significa que estou cansada. Tudo se treina, até a criatividade e a inspiração, como já dizia Picasso, tem de nos encontrar a trabalhar. Por isso, se não chega enquanto estou à secretária, o melhor é descansar. Se conseguir aborrecer-me, então descubro-a de certeza. O aborrecimento é muito desvalorizado e muito importante.
Já pensou em desistir de algum projeto, ou já desistiu, porque deu demasiadas dores de cabeça?
Já pensei várias vezes e já desisti algumas, quando o cliente me deu muitas dores de cabeça.
Qual é o seu espaço favorito para trabalhar?
O meu atelier. Na verdade, detesto trabalhar em qualquer outro sítio.
Qual foi o livro que mais gostou de ilustrar/escrever?
O meu último livro publicado pela Orfeu Negro: “Palmiras Pantaleões Malaquias”. Foi muito divertido todo o processo, desde a pesquisa, à escrita e à ilustração.
E qual foi o mais desafiante?
Houve dois. Um deles foi “A Sereia e os Gigantes”, o livro que fiz depois de ganhar o prémio de Bolonha e, entre a pressão, a responsabilidade e o tipo de narrativa que me propus a fazer senti-me muito ansiosa. A seguir foi o “Irrequieta, Madalena Perdigão”, que saiu este ano, editado pela Tinta-da-china e pelo CAM. Este último foi a minha primeira biografia.
E foi desafiante por ser a primeira biografia?
Sim, porque a história da Madalena exigia que o vocabulário gráfico do livro fosse muito versátil, desde representar espaços com estilos arquitetónicos muito diferentes; espaços em escalas diferentes; retratar figuras conhecidas e simultaneamente desenhar multidões; a desenhar ambientes de orquestra, balett, artes performativas, etc, mas também salas de reuniões ou praia… foi muito exigente.
E quando surge a vertente de realização dos filmes de animação?
Através de um convite da produtora. O Humberto Santana, produtor da Animanostra, já fez filmes com muitos ilustradores, e é responsável por nos atrair para o desenho animado.
Não fica por aqui. Já criou um espetáculo de palco para miúdos e produziu um programa de rádio para a infância. Como surgem estes desafios? E como correram?
Ambos também por convite. O facto de me mover em diferentes linguagens deve ter ajudado a que os convites surgissem. Correram muito bem e irei continuar no teatro. O projeto para a Antena 2 apenas precisava de melhores condições para continuar e, infelizmente, a RTP aposta pouco (financeiramente e editorialmente) em conteúdos de verdadeiro serviço público.
Qual é o maior reconhecimento que pode ter?
Que um livro se venda bem, não só em Portugal, mas que também tenha várias edições estrangeiras.
Não é só nos livros “para adultos” que existem conselhos e mensagens. Como é que se passa essa informação aos mais pequenos, através de imagens, e de palavras, digamos, mais simples?
Costumo falar de três conceitos que orientam o meu trabalho: universalidade, permeabilidade e afetividade. Em resumo: não infantilizando a audiência, deixando espaço para interpretação e cocriação do leitor, usando dispositivos metafóricos que partem, e regressam, às emoções. A síntese é fundamental para conseguir os três, eliminar o acessório, reduzir texto e imagem ao essencial. O humor também é uma boa ferramenta. Sobretudo, é importante criar um objeto artístico livre, não prescritivo ou estereotipado, que seja feito com honestidade e convicção.
Sente-se realizada?
Sim e sei que isso é um grande privilégio.
Se não fosse esta a sua profissão, o que é que gostava de fazer?
Talvez estivesse noutra área artística ou noutra ramo do livro. A fazer cinema de imagem real, ou na edição, ou na mediação cultural.
Como se sente por ser convidada da Festa da Ilustração de Setúbal?
Muito feliz, a Festa da Ilustração está agora a desempenhar o trabalho que a Bedeteca de Lisboa fazia, com a edição dos catálogos de Ilustração Portuguesa, de que falei antes. É como voltar à casa partida, mas com muitos terrenos conquistados.
Quais os projetos que vai apresentar?
Vou apresentar originais e reproduções de storyboards, esboços e ilustrações finais de dez livros, de um dos meus filmes de animação e do espetáculo de teatro. A exposição chama-se “Lapso” e deixo aqui parte do texto de apresentação: “Esta exposição é feita de hesitações, saltos temporais, erros, ilustrações feias e bonitas. Pois, sem o feio, os erros ou os lapsos, as últimas não existiriam. Pelo menos comigo, as ilustrações fazem-se a partir pedra e não ao primeiro risco. Como um timelapse analógico, mostro aqui o caminho que algumas ilustrações percorreram desde esse risco até ao desenho final”.
O que espera da reação dos setubalenses?
Só espero que gostem e que visitem a exposição.
Quais são os seus próximos projetos?
Tenho um espetáculo de teatro e dois/três livros para 2025. Por enquanto, em novembro deverá chegar às livrarias a segunda obra da coleção “Heroínas das Artes”, do qual o livro “Irrequieta, Madalena Perdigão” faz parte. O segundo título é a biografia da Ana Hatherly e chama-se “A Mão e os Gestos da Ana Hatherly”.
Carregue na galeria para conhecer alguns trabalhos da ilustradora portuguesa.