Em 1494, os reinos de Portugal e Castela traçaram uma linha com que dividiam o mundo em dois. Na década de 60, do século passado, os irmãos Karl e Theo Albrecht fizeram o mesmo com a sua herança, a cadeia de supermercados Aldi. E tudo por causa de cigarros.
Miúdos pobres da cidade industrial de Essen, ajudaram a transformar uma pequena loja de bairro numa cadeia multinacional de supermercados. O ADN, esse continua a ser o mesmo: bens-essenciais a preços low cost. Hoje, o grupo Aldi tem mais de 10 mil lojas em todo o mundo, 80 delas em Portugal. Pelo caminho, o crescimento meteórico da empresa atirou Karl e Theo para o grupo dos homens mais ricos do mundo.
Nascidos com dois anos de diferença, morreram com um intervalo de quatro: Karl em 2014 com 94; Theo com 88 em 2010. As duas fortunas juntas ascendiam a mais de 40 mil milhões de euros.
O mundo dividido em dois Aldis
Quando o pai Karl foi forçado a deixar o trabalho nas minas depois de ser diagnosticado com enfisema pulmonar, a mulher Anna decidiu criar o seu próprio negócio. Em 1913 abria uma pequena loja em Essen onde os jovens Theo e Karl cresceram.
O primeiro ficou-se pela loja a ajudar a mãe. O segundo preferiu ganhar dinheiro atrás do balcão de uma charcutaria. O plano passava por fugir ao trabalho árduo das minas e resultou. Mas não os livrou dos horrores de outra realidade, quando nos anos 30 explodiu a Segunda Guerra Mundial.
Os dois irmãos juntaram-se às corporações nazis que combateram as forças aliadas. Karl foi enviado para a frente de leste, onde foi ferido. Theo serviu às ordens do general Rommel em África, mas acabaria por ser capturado por tropas americanas na Tunísia, em 1945.
O fim da guerra levou-os de volta a Essen, onde tiveram a sorte de encontrar uma loja intacta pelos bombardeamentos aliados. Acabaram por ser eles a assumir os comandos da loja. O mundo tinha mudado e a abundância dos tempos pré-guerra tinha acabado.
Os irmãos Albrecht perceberam isso mesmo e mudaram o modelo de negócio. A sua loja venderia então apenas os produtos não-perecíveis mais populares, para que conseguissem poupar dinheiro e pudessem baixar os preços dos bens essenciais nos lares alemães.
O dinheiro era valioso e só era gasto no essencial. Não havia estantes bonitas: todos os produtos eram dispostos em caixas de cartão, assentes em paletes de madeira. A formula acertou em cheio e apesar da crise, os irmãos expandiram o conceito e abriram uma dezena de lojas nos anos 40. Uma década depois já eram mais de 300 em toda a Alemanha.
A tática manteve-se mais ou menos inalterada até aos dias de hoje: os produtos populares ficam; os que não atingirem os mínimos são implacavelmente arrancados das estantes; pouco ou nenhum dinheiro é gasto em publicidade; e a decoração é sempre minimalista. O nome também mudou: em 1961, Karl e Theo minimalizaram o nome Albrecht Diskont e ficaram simplesmente com Aldi.
Foi nos anos 60 que finalmente Karl e Theo encontraram o primeiro obstáculo na até então política conjunta. Theo queria acrescentar um novo produto ao elenco: os maços de cigarros. Karl estava contra, acreditava que só serviria para atrair ladrões. A discussão, apesar de amigável, originou um terramoto na Aldi. A única forma de sobreviver passava por dividir a meio a já enorme empresa.
Assim, tal como espanhóis e portugueses dividiram o mundo, os irmãos Albrecht dividiram a Alemanha. Foi traçada uma linha que dividia norte e sul do país. Theo ficaria com a gestão das lojas acima dessa fronteira fictícia, Karl com as restantes.
O mesmo foi feito no ramo internacional da Aldi, com os diversos países a ficarem sob o domínio de um dos dois ramos: a Aldi Sud e a Aldi Nord. A Aldi Nord ficou com países como Portugal, Polónia, Holanda, Luxemburgo, França ou Dinamarca. Já a Aldi Sud tomou conta da Austrália, Irlanda, Itália ou Reino Unido.
A exceção acontece nos Estados Unidos, o único país a par da Alemanha onde os dois ramos da empresa gerem lojas: a Aldi Sud em nome próprio; a Nord sob a marca que adquiriu em 1979, a Trader Joe’s.
Parte do segredo dos irmãos terá estado na avareza com que geriam as lojas, reduzindo custos ao máximo, até aqueles que a maioria julgava serem indispensáveis. Durante a década de 50, reforçaram que nas suas lojas não haveria telefones, como forma de poupar dinheiro e evitar distrações. Caso os responsáveis das lojas necessitassem de fazer uma chamada, teriam que usar as cabines públicas.
Ricos e incógnitos
A máquina alemã correspondia às expetativas e à fama. Era altamente eficiente e, no topo, sentavam-se dois homens que quase ninguém conhecia — apesar de gerirem já milhares de lojas. A anonimidade nunca foi um requisito essencial, mas um incidente em 1971 demonstrou que poderia ser a melhor opção. Até então desconhecido, o nome de Theo Albrecht haveria de surgir nas capas dos jornais alemães.
Foi através de um telefonema que a mulher de Theo, Cilly Albrecht, soube que o marido tinha sido raptado. Na chamada, os raptores exigiram a entrega imediata de mais de três milhões de euros.
Apanhado à mão armada na própria casa, Theo foi levado para Dusseldorf, onde foi fechado num armário até que o resgate fosse pago. A família cedeu e, 17 dias depois, entregou o dinheiro.
O crime perfeito acabou por ser um fracasso. Os culpados foram apanhados: um deles era um conhecido criminoso, Paul Kron, mais conhecido como Diamond Paul, apanhado ao usar uma nota de 500 marcos alemães; e o seu antigo advogado e charlatão, Heinz Joachim Ollenburg, que fugiu para o México, onde foi encontrado e depois extraditado. Acabaram condenados a oito anos e meio de prisão, que cumpriram — mas nunca se soube o que aconteceu ao dinheiro.
O segredo do paradeiro do dinheiro morreu com a dupla criminosa. Ambos morreram no início de 2017, sem nunca terem revelado o que aconteceu aos mais de três milhões. De acordo com o “Bild”, Kron confessou que Ollenburg seria o cérebro do esquema no qual ficou combinado os dois homens repartirem o valor do resgate. “Honestamente, não sei [o que aconteceu ao dinheiro]. Só recebi cinco mil euros do Ollenburg. Ele foi mais esperto do que eu”, terá revelado Kron ao jornal alemão.
Os 17 dias em cativeiro deixaram marcas profundas na personalidade de Theo. Habituado a levar uma vida reservada, retraiu-se ainda mais dentro da sua própria bolha — sem nunca perder a noção de uma boa oportunidade de negócio. Viria mais tarde a tentar deduzir nos impostos os mais de três milhões de resgate, declarando-os como despesa de trabalho.
Ao longo dos anos, Theo alimentou a paranóia. Evadia-se a todos os eventos, proibiu que lhe tirassem fotos e viajava de casa para o trabalho num carro blindado. Todos os dias fazia uma rota diferente.
Theo e Karl partilhavam o gosto pela privacidade. Era até uma espécie de obsessão. Passavam a maior parte do seu tempo numa ilha privada no Mar do Norte, onde jogavam golfe e se dedicavam ao coleccionismo, isto quando não estavam a gerir uma das maiores fortunas da Alemanha e do mundo.
Raramente interagiam com a imprensa, não davam entrevistas e limitavam-se às comunicações estritamente necessárias. Theo, o mais obcecado, foi descrito pela “Forbes” como “mais solitário do que o Ieti”.
Hoje, o império Aldi continua a crescer, embora a milionária fortuna que gerou esteja agora em águas mais agitadas. Depois de décadas de sintonia entre Theo e Karl, os herdeiros — também eles pouco adeptos das câmaras — preparam-se para ir à luta por cada euro.
Nicolay Albrecht, acusou a mãe Babette — viúva de Berthold, filho de Theo — e as três irmãs de desviarem dinheiro do fundo da família. Em disputa está uma fortuna de mais de 16 mil milhões.