Vindo de Castanheira de Pêra, uma vila no distrito de Leiria, Artur dos Anjos Alves, na altura com 23 anos, começou o negócio Chapelaria Nova, na Rua Dr. Paula Borba, na Baixa de Setúbal, em 1930. Inicialmente, estava longe de imaginar que, mais tarde, este se iria transformar num negócio de confeção forte e que ia durar uma geração. 94 anos depois, chegou o fim: a loja Confeções Alves está para trespasse. Porém, não encerra sem antes contarmos a sua história.
A montra não engana e Sérgio Alves, 77 anos, também não. Entre as camisas, os polos, as calças de alfaiataria e os casacos, estão décadas de memórias, muita dedicação, esforço, amor e uma “história de família muito bonita”, como começa por dizer o proprietário e sobrinho do fundador, à NiS. A emoção não se esconde e o orgulho com que conta cada linha de vida daquela loja quase centenária, ainda menos.
Tudo começou a 8 de abril de 1930. Artur, o fundador e tio do Sr. Sérgio, natural de Castanheira de Pêra, veio para Setúbal depois de ter estado em Boliqueime, no Algarve, na loja de um tio. As coisas correram mal e voltou à sua terra natal. O avô de Sérgio (pai do tio) era empregado num grande armazém de tecidos em Lisboa. Em Setúbal, um outro irmão já estava empregado numa loja muito conceituada da mesma área.
Assim, Artur veio para Setúbal e começou a trabalhar numa chapelaria que existiu durante muitos anos na cidade: a Chapelaria Mendes. “Esteve lá alguns anos empregado e aprendeu algumas coisas. Na altura, a chapelaria era uma arte. Não era só comprar chapéus, bonés e similares e vender. Existiam oficinas de chapelaria. Eram limpos e arranjados e saía quase um chapéu novo”, revela.
Assume que era “solteiro e bem vivido, com um rol grande de amigos e uma relação muito boa com as pessoas”. Todos estes motivos levaram Artur, no auge dos seus 23 anos, a começar o seu próprio negócio, a que chamou Chapelaria Nova. Abriu juntamente com um oficial de chapelaria — patamar que Artur, na altura, ainda não tinha atingido. O oficial ainda esteve presencialmente na loja, a trabalhar, durante alguns anos.
“A loja teve altos e baixos. Antes da Segunda Guerra Mundial, Setúbal era uma miséria com as fábricas de peixes e os pescadores. Entretanto, havia um rapaz que tinha acabado a escola e que era sobrinho da mulher do irmão dele, chamado Carlos. Trouxe o rapaz para empregado e foi crescendo. Para o segurar, já que era um homem honesto e trabalhador, deu-lhe uma quota”, assegura Sérgio.
Depois disso, em 1957, o tio casou, os anos foram passando e não teve filhos. Sentiu que estava a trabalhar “para ninguém”. O pai de Sérgio, num total de sete irmãos, foi o único que teve descendentes: neste caso, sete meninas e um menino, que é Sérgio.
Nesse mesmo ano, chamou a sobrinha (irmã de Sérgio), Idalina, para viver e estar com eles, com apenas dez anos. Em 1961, o pedido foi o de que Artur levasse o filho para “fazer dele um homem”. Foi recebido de “braços abertos” e ambos os irmãos, em anos diferentes, deixaram os pais e vieram para Setúbal. Sérgio tinha 14 anos.
Veio na condição de ser “bom rapaz”. Passados 31 anos, ainda se mantinha o conceito de chapelaria, mas já com um “apêndice” — a venda de sapatos, “portugueses e do melhor que se fabricava no País”. O primeiro dia de trabalho do Sr. Sérgio ficou na memória: 30 de abril de 1961. O tio disse: “Meu menino, isto aqui é para trabalhar. Toma a vassoura e a pá”, e foi essa a tarefa — limpar a loja.
Seguiram-se as montras e a verdade é que não se podia sequer sentar. Apesar do tio ser uma pessoa “excecional”, era também “exigente”. Não eram permitidos atrasos e havia sempre alguma coisa para fazer na loja, nem que fosse pegar na escova e escovar os chapéus.
A Chapelaria Nova tratava também da limpeza e reparação desse acessório, com a vertente de oficina e foi precisamente esse serviço que garantiu o sustento e o sucesso do negócio. “Vinham sujos e eram completamente reconstruídos. Existiam vários processos para ser lavados, com formas e fitas para pôr por fora e tiras de coro para pôr por dentro. Eu fiz isso tudo”, confessa.
Quando chegou o mês de setembro, continuou os estudos na escola Comercial (atual Sebastião da Gama). Estava na loja das 9 às 19 horas, ia ao Bairro da Conceição onde morava para comer qualquer coisa e, às 19h45, ia estudar. Entretanto, a loja foi crescendo e até nasceu outro negócio da família, a Casa Alves, que vendia atoalhados e tecidos ao metro, até há quatro anos, pois também encerrou.
A reestruturação da loja
A atual loja Alves foi a Chapelaria Nova até 1965. Em 1962, deu-se uma reestruturação total, que deu lugar ao espaço que hoje conhecemos. Apesar das remodelações, continuou a trabalhar como chapelaria, mas a oficina já quase não funcionava com a “desmoda” do chapéu. Manteve a venda de sapatos e começou a ter camisas, gravatas e outros artigos de confeção, que evoluíram “em desprimor da chapelaria”. Ainda tem meia dúzia de chapéus e há quem queira comprar, mas não vende porque fazem parte da história do local.
Na década de 70, Sérgio terminou o curso de seis anos em Aperfeiçoamento Geral de Comércio, com disciplinas que davam acesso a vários empregos. Mas a verdade é que esteve sempre na loja Alves, até agora. A primeira quantia que ganhou foram 150 escudos. “A maior alegria que dei ao meu tio foi no dia 20 de março de 1978. A minha sogra disse que tinha nascido um homem na família que podia continuar o negócio”, revela Sérgio.
Com o passar dos anos, Artur decidiu oferecer sociedade a Sérgio. Primeiro numa loja e, depois, na outra. E o mesmo aconteceu com a irmã, Idalina. “Ele disse para nós: ‘Meninos, já não estou aqui a fazer nada. Ando a ver-vos passar. Por isso, vou deixar-vos o que tenho, mas também ficam com uma grande carga de trabalhos”, recorda. De uma forma gradual, a loja foi evoluindo nas confeções.
A única intenção do tio era fazê-lo crescer. Quando estava quase a terminar o curso, existia a possibilidade de o Sr. Sérgio ir para o Banco Nacional, e se quisesse, ficava lá a trabalhar. Não pensou duas vezes e instantaneamente disse que queria ficar na loja e, assim, nunca deixar o tio.
A secção de sapatos não era do agrado de Sérgio, sobretudo porque começaram a aparecer outras marcas concorrentes e viu que “ocupava muito capital e não dava lucro”. Assim, acabou com a sapataria e introduziu a venda de pijamas masculinos de uma marca exclusiva, a Prodigy. As camisas também tiveram muita procura. E a qualidade foi uma das coisas da qual nunca abdicou e sempre com preferência pelo que é português.
Além da parte comercial, era epicentro de várias tertúlias, em diferentes pontos de ideias e de gostos. Quase todos os dias, no tempo do tio — e ainda continuaram com Sérgio —, vinham colegas de trabalho e comerciantes, todos “bons cavaqueadores”, perder horas em conversa, sobre variados temas, de caçadores a republicanos.
O encerramento de um ciclo
Ao longo dos anos, começaram a aparecer as grandes empresas. Enquanto não vieram os centros comerciais, o negócio foi resistindo. “As marcas vinham para a Baixa, mas passado quatro, cinco anos, desapareciam, e nós continuávamos. Mas depois vieram as grandes superfícies e a política económica do País e os grandes senhores poderosos arruinaram a cidade. Agora, está como está”, desabafa.
O comerciante considera Setúbal a cidade do seu coração e “das mais lindas que conhece”. Apesar de não duvidar que tem tudo para ser “grandiosa”, assume que se encontra “completamente atrofiada”, o que se traduz numa “dor no coração”.
À NiS, defende que os lojistas que tinham estabelecimentos na Baixa e já fecharam, foram “mais espertos”. “Saíram na hora certa e eu vou sair na errada e na pior altura. Porque eles saíram quando a Baixa ainda tinha algum sentido. Eu, por uma questão de amor à casa, à família e ao pai que me fez homem e criou, aguentei bastante”, acrescenta.
Há quatro anos teve um problema de saúde e o filho mais velho, Artur, e a nora, Margareta, que queria ter uma loja na Baixa, ficaram a gerir o negócio. O Sr. Sérgio aparecia apenas quando era necessário, depois de dar as indicações. Começaram a trabalhar muito bem, até à pandemia de Covid-19. Depois dessa época, já não foi possível recuperar.
Neste momento, a loja Alves está para trespasse e, “à partida”, é o fim do negócio. O sentimento de Sérgio é como o livro que está a ler: há um hino à vida: “Houve pessoas que me confiavam a escolha dos artigos. Tenho a consciência de que fui sempre honesto. Tentei sempre ser correto. Vivi tudo isto e vi grandes lojas morrer”.
E acrescenta: “O universo é cíclico, nasce, morre e renova-se. Cheguei a essa conclusão. Nasci, tenho de morrer qualquer dia e a minha organização, que há mais de 40 anos está às minhas costas, começou e vai terminar. Não tenho forças para continuar e vou reconhecer que chegou o momento. Estou minimamente bem. Tenho grandes amigos e também grandes clientes”.