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Rafael Portásio: “A primeira receita que aprendi a fazer foi o strogonoff da minha avó”

O jovem é o novo chef do espaço Wine Love, no antigo Retiro Azul, em Palmela. A NiS quis saber tudo sobre o seu percurso.
Já trabalhou em Inglaterra.

Existem vários momentos que Rafael Portásio, 26 anos, recorda com carinho e que o transportam para o universo da culinária: seja pelas batatas que cortava com facas de mesa, quando ainda tinha quatro anos, para comer com azeite antes das refeições na casa da avó, ou da cozinha de brincar que recebeu quando era miúdo e que guarda, até hoje, religiosamente. Ainda assim, nem sempre ambicionou trabalhar nessa área, ainda que já tivesse o bichinho.

O jovem, que cresceu entre o Pinhal Novo e Setúbal, é agora chef do restaurante Wine Love, em Palmela, inaugurado em outubro. Desta vez e, ao contrário da maioria dos locais onde trabalhou, o conceito do espaço foca-se na gastronomia tradicional portuguesa o que, de alguma forma, remonta às suas raízes.

O profissional ganhou experiência em vários espaços diferentes mas, além dos meses que passou a trabalhar em Inglaterra, o grande destaque da sua carreira foram os cinco anos em que esteve no Xtoria. A New in Setúbal falou com Rafael para perceber porque é que quis aceitar o novo desafio e como tem sido a sua vida até aos dias de hoje.

O pequeno Rafael teve influências de onde e de quem, para ser quem é atualmente?
Apesar de a minha vida ter passado mais pelo Pinhal Novo, a minha família pertence a Alcácer do Sal. Fui criado nas Praias do Sado, onde está a minha avó, Rosília. O meu pai tinha uma empresa de canalização e trabalhava de manhã à noite. A minha mãe era contabilista dele, ou seja, trabalhavam muito. Quando nasci, a minha avó tinha acabado de se reformar e então foi uma ajuda e esteve sempre bastante presente.

Então, passou muito tempo nas Praias do Sado.
Passava os dias inteiros, principalmente no verão. Foi ela que me passou o bichinho de cozinha. A melhor receita que ela fazia era o strogonoff de frango com cogumelos de lata e também o bacalhau com natas. Tenho também algumas lembranças da minha bisavó, que cozinhava com outra roupagem mais caseira, mais comida de tacho e tradicional português.

Deve ter boas lembranças desses momentos, com a sua avó.
Claro que sim. E sei que toda a gente achava imensa graça porque, por exemplo, a minha avó estava a fazer estufado e eu estava com aquelas facas de mesa a descascar batatas, para comer temperadas com azeite antes do almoço. Não tinha mais do que quatro anos. E também me lembro de que, num Natal, recebi uma cozinha de brincar, que existe ainda hoje, com todos os autocolantes que lhe colei na altura.

E qual foi a primeira receita que aprendeu a fazer?
Foi o strogonoff, 300 mil vezes e várias tentativas depois. Cozinhava para os amigos, já em adolescente, e há um segredo: a carne de frango temperada com alho e vinagre. Mas há um episódio giro que aconteceu quando eu era pequeno. A minha avó trabalhava nas mondas do arroz e lavava-o sempre antes de cozinhar. Os meus pais estavam doentes e quis fazer uma canja. Estava a meio da confeção e liguei à minha avó a perguntar se a massa também se lavava. Fiz asneira, porque quando perguntei, já estava toda molhada.

Então e depois, como é que seguiu a sua formação?
Cheguei ao 9.º ano e fiz a inscrição na Escola de Hotelaria e Turismo de Setúbal, às escondidas. O meu pai não queria porque desejava que eu seguisse os seus passos. Contei aos meus amigos e ficaram contentes, mas nem eu tinha grandes esperanças nessa altura. Antes disso, queria era jogar à bola, como qualquer miúdo.

Quem é que era o Rafael, no grupo de amigos?
O Rafael gordinho. Era o que corria menos de todos e era o último a ser chamado para as equipas. Por momentos, consegui ser capitão de equipa, e assim entrava sempre. Ficava à baliza. No ano em que entrei no curso, em 2013, foi uma reviravolta, com a decisão que tomei com quase 14 anos.

E como é que correu?
Fiz as entrevistas e passei, para tirar o curso de Cozinha e Pastelaria. Não queria mais a escola teórica, queria fazer algo prático. Gostava de cozinha e a paixão surgiu gradualmente. O primeiro dia de aulas foi genial. Havia três marcas de facas e tínhamos de escolher tudo. A primeira pessoa da turma que conheci, quando era um puto mega assustado, foi um rapaz de 18 anos, ou seja, mais velho, que disse à minha mãe que me ajudava — é o meu chef de secção agora, no Wine Love.

E quando começa o contacto com uma cozinha, num restaurante?
O primeiro estágio foi num restaurante do chef Cordeiro, no Terreiro do Paço, em Lisboa, e aquilo deu uma reviravolta completa. Foi o primeiro sítio onde estive. Entrava às 10 e apanhava o barco às 19 horas, para ir para casa, até que comecei a ficar cada vez mais tarde e aí perceberam que queria mesmo aquilo. Ao início, só picava os alimentos, mas fiz uma revolução dentro do restaurante e disse que queria mais. Comecei depois a fritar batatas, e, num dia, tive de fazer uma secção com uns 20 itens da carta, quando a pessoa responsável se despediu. A boa notícia é que me deram os parabéns na altura.

Só esses meses, valeram para mudar ainda mais o chip.
Sem dúvida. Voltei para a escola e comecei a ganhar mais respeito pelos colegas. Nesse ano, em 2015, concorri ao Jovem Talento da Gastronomia. Pensava que o futuro ia passar pela pastelaria e decidi tudo de uma semana para a outra. Não correu bem. No segundo ano de cozinha, fui estagiar para o Tivoli em Lagos, no Algarve, uma parte em buffets e outra no bar da praia. Posso dizer que não foi espetacular, mas também me safei e até recebi um 17,5 na nota final.

E quando regressa à escola, volta a concorrer ao Jovem Talento da Gastronomia?
Volto a concorrer porque já sabia que queria ser cozinheiro. Para uma categoria que era legumes Bonduelle, em que temos de usar um produto da gama, que são congelados. Fiz uma barriga de leitão, tudo XPTO, e até dormi ao lado da panela. Ganhei a fase regional, mas perdi a final em novembro porque me esqueci de temperar os legumes. Nesse ano, finalizei então o curso de cozinha nível 4.

E o que se seguiu no seu percurso?
Trabalhei na Hamburgueria e Pregaria tradicional, em Setúbal. Comecei a lavar pratos e depois, então, a cozinhar. Quis tirar nível 5 na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa, porque queria ser formado com um chef de estrela Michelin e, lá, estavam muitos. A verdade é que toda a gente diz que o que vem a seguir só aconteceu porque estudava nesse sítio: voltei ao Jovem Talento da Gastronomia, em 2017, e ganhei a fase regional e a final, da categoria petiscos com Super Bock, com um prato de pregado servido como se fosse canapé e uma transformação de Bulhão Pato com shot de palhinha, entre outras.

Correu sempre bem?
Não. Estive parado durante um tempo, mas recebi uma mensagem de um colega a dizer que ia começar a trabalhar em Oxford, em Inglaterra, num restaurante do chef Raymond Blanc, o Le Manoir aux Quat’Saisonse, que tem duas estrelas Michelin. Mandei o currículo e não recebi resposta. Tentei, depois de duas vezes, para uma categoria que não era de cozinha, como chef de mesa. Passado dois dias, recebi um email a dizer que tinha enviado para a vaga errada e se queria, então, concorrer para a certa. E era isso mesmo que desejava.

E gostou da experiência no Le Manoir aux Quat’Saisons?
Fui passado duas semanas, à experiência, gostaram de mim e fiquei. Isto aconteceu em 2018. No final de 2019, voltei. Foi uma experiência brutal, mas com muita violência, com pessoas de todos os cantos do mundo, numa antiga cozinha francesa. Nunca desisti porque tinha raiva. Lembro-me que falhei um prato de risotto e levei com ele no avental. Amei estar lá, mas não voltaria por causa da rigidez. Não era aquilo que pretendia para a minha vida.

É nessa altura que surge o Xtoria.
Exatamente. Concorri e entrei, onde estive durante cinco anos. Comecei como cozinheiro de segunda e saí como chef executivo. Foi a maior progressão que fiz. Ali, existe uma cozinha que se vive. Dei muita vivacidade e energia ao espaço. Não me considero o melhor cozinheiro do mundo, mas em termos de mood, sei que faço a diferença. Quando olho para a cozinha, e se estão em baixo, começo a cantar para alegrar as pessoas e resulta.  

E como é que correram esses cinco anos?
Tive muita liberdade criativa. Era uma cozinha que me dava muito gozo e podia fazer mais à portuguesa o que aprendi em Inglaterra. Saí em dezembro de 2020 e aceitei um desafio no Frango Vaidoso, como subchefe da cadeia toda. Isto porque sabia que tinha competências para exercer uma boa cozinha, mas faltava a parte de gestão e foi isso que fiz nesse sítio. Deu-me uma bagagem gigantesca. Lidamos com vários quilogramas, de vários géneros alimentícios, todos os dias. É uma cozinha de grande escala. Só que não tinha a mão na massa e, então, fiquei lá cinco meses.

E o que se seguiu, depois do Frango Vaidoso?
Fui chefiar a Taberna do Largo e foi aí que comecei a questionar-me sobre o que queria para a carreira. Lembro-me de um dia estar a ir levar o lixo e de um homem, que não conhecia, falar comigo a perguntar se queria voltar ao Xtoria — era o marido da Rute, a proprietária. Se quisesse, ia entrar como subchefe do chef João Pires, e foi isso que fiz em outubro de 2021.

Já se sentia realizado.
Fui sentindo. Entrámos no Guia Michelin, na categoria Bib Gourmand. Fiz também vários workshops na cidade, entretanto, de ostras e outros produtos, mas chegou um momento em que me senti estagnado e quis procurar algo novo. A cozinha de fine dining mexe também com o psicológico e eu estava desgastado. Começo a pesquisar e liga-me uma amiga que foi colega de estágio no Tivoli, para ir para o Algarve, mas as coisas não correram como previsto e acabei por nem começar esse projeto. Estava meio perdido.

E como é que deu a volta?
Hoje brinco com isto, mas posso dizer que estive 35 minutos desempregado. Saí do hotel onde estava, no Algarve, com os olhos alagados. Quando fui para a praia, para descontrair um bocadinho, liga o Hélio Cordeiro — que é proprietário do Wine Love, juntamente com o João Almeida — a dizer que tinha de ser chef de cozinha do restaurante Retiro Azul que, agora, renasceu.

E, assim, começa um novo desafio, já que aceitou.
Aceitei, mas é um tipo de confeção que não fez parte do meu percurso profissional. É um conceito de decoração vanguardista e jovem. Estamos a trabalhar a cozinha tradicional portuguesa, que sempre me fascinou, mas que nunca trabalhei. Saí da minha zona de conforto. Há vários projetos assim, com um serviço jovem de receitas antigas. Aqui, sente-se um ambiente de fine dining, mas com este tipo de cozinha. Sinto cada vez mais que é como se estivéssemos num restaurante Michelin. O pão chega quente ao almoço e ao jantar, de uma padaria local na Quinta do Anjo, e o azeite, por exemplo, é de Alcácer do Sal. Trabalhamos sempre com produtos locais e temos uma equipa incrível. Os colegas conseguiram até recriar um cheiro de comida que eu senti, num sítio muito familiar: o da cozinha da minha avó.

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